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Ella Lefèbvre via muitas coisas estranhas. Mas não sabia que eram estranhas porque, bem, ela tinha dois anos. Não lhe parecia incomum ver ratos falarem porque eles sempre tinham falado naquela casa. Jeanette, por exemplo, nunca parava de falar enquanto Ella arrancava pedaços de grama para colocá-los na tigela com o resto de sua sopinha de mentira.
— Mademoiselle, por favor. Seus pais sabem onde você está?
Ella deu de ombros, agarrando umas pedrinhas e colocando-as na tigela junto à areia e a água do cocho dos cavalos. Os bracinhos já estavam sujos de lama até os cotovelos.
E foi quando se agachou para agarrar umas folhas que a viu: uma fada.
Uma fada de verdade no seu quintal!
Ella sabia tudo sobre fadas. Era versada em todos os livros infantis que o pai lia todas as noites. Então ela sabia que orelhas pontudas e pés descalços só poderiam significar uma coisa.
Ah, sim, isso e a mulher tinha acabado de se materializar no meio do jardim. Parecia um ótimo indício.
A coisa mais engraçada é que a fada tinha o rosto da mãe de Ella. Olhando para trás de si, para a casa, a menina tocou o próprio queixo enquanto tentava calcular o que aquilo significava.
Quando a fada parou diretamente ao seu lado, ela olhou para cima. As sobrancelhas loiras da mãe de Ella se uniram.
— Ah, não. Não me diga que…
— Você é minha mãe ou não? — perguntou Ella, abraçando sua tigela de sopinha.
A mulher balançou a cabeça.
— Hum… não.
— Ah. Tá bem. — Ella saltitou alguns passos para o lado, jogando uma florzinha na maçaroca. — Minha mãe tá lá em casa! — Ella olhou para a mulher com o cenho franzido. — Quem é que é você?
A mulher olhou para a casa e de novo para a criança. Ela não parecia nada sábia. Ella achou que podia melhorar muito no quesito de sabiedade.
— Eu me chamo Clémence.
— Hm. — Nada impressionada, Ella mergulhou a mão na sopinha e espirrou um tanto da lama no vestido da moça. — Faz mágica!
Clémence soltou o ar, dando um passo à frente.
— Acho que só vou entrar por um minuto…
Ella pisou forte no chão se colocando no caminho.
— Não! Faça magia! Magia!
Clémence colocou os braços na cintura. Ella quase riu com o quanto se parecia com a mãe dela quando fazia isso.
— Você tem bastante atitude, não tem?
Aí já é demais, pensou Ella. Se a fada não estava ali para ser sábia e nem para fazer magia, era hora de chamar o reforço. Ela tomou fôlego, abriu a boca o máximo que conseguia e gritou:
— MAMÃE!
A mamãe apareceu na última janela do sótão, colocando a cabeça para fora.
— Ella! Procurei você na casa toda!
— ‘Tô no jardim! — respondeu Ella erguendo as mãozinhas com impaciência. — Olha ela, mãe!
Ella apontou e o olhar de Eira finalmente recaiu sobre Clémence. Houve um momento de silêncio, em que a mãe de Ella respirou fundo antes de acenar.
— Oi. Você demorou.
Clémence olhou para baixo, para a criança.
— É, eu… não me dei conta de que tinha demorado tanto.
— Espere aí embaixo! Já estou descendo!
Ella não podia acreditar que sua mãe faria isso com ela. Deixar que a estranha ganhasse! Vir aqui descalça e de orelhas compridas, não fazer uma mísera magia e nem sequer mostrar uma sabedoria?! Ela marchou, mau humorada, até a mesinha de chá de metal em que Jeanette a esperava, colocando sua sopinha sobre a mesa.
— Pronto. Come. — Ofereceu à ratinha.
Jean olhou para dentro do pote e balançou a cabeça.
— Não, obrigada.
Ella se sentou na cadeira, cruzou os braços e fungou baixinho. Ninguém queria brincar certo hoje…
A fada Clémence se aproximou. Ela tentou sentar na cadeirinha, mas puxou o ar entre os dentes e preferiu sentar no chão. Ella achou adequado. Fadas não sentavam em cadeiras de criança.
— Eu posso ajudar com a sua sopinha?
A menina olhou feio para a mulher, mas lentamente relaxou. Por fim, assentiu. Sendo sincera, ela adoraria ver como as fadas faziam suas sopinhas.
Clémence uniu as mãos e as esfregou, olhando delas para Ella. A criança se aproximou, tentando ver e pequenos flocos de neve começaram a cair, brilhantes sob a luz do pôr do sol.
— Uau.
— Agora precisamos dizer umas palavras. O que você acha? — Ella sentia-se tímida de repente. Uniu as mãozinhas, imitando a outra e deu de ombros. — Eu gosto dessas: bibbidi, bobbidi, boo!
A fada abriu as mãos e soprou. Flocos de neve saíram do meio da sua mão e caíram na sopinha, derretendo na hora. Clémence suspirou.
— Ih… não funcionou. Que tal se você me ajudar?
Ella assentiu, oferecendo suas mãos. Clémence as segurou, acariciando a pele macia por um segundo.
— Vai, tia! Como é que fala mesmo?
— Bibbidi.
— Bibbidi. — ecoou Ella.
— Bobbidi. — E a menina repetiu. — Boo.
As duas disseram juntas. Clémence soprou as mãos de Ella e as levou até a sopinha. Flocos de neve caíram mais uma vez, fazendo coceguinhas nas palmas da menina. Quando tocaram na sopinha, porém, ela mudou.
Não era mais feita de terra e folhas e pedras. Agora, um cheiro fresco de cogumelos e batatas subia, assim como vapor de algo recém saído do forno. Os olhos de Ella se arregalaram e ela sorriu, colocando as mãos contra o rosto. Ela tinha feito isso?
— É de verdade?
— É sim. E acho que está bem gostosa. Parabéns.
Ella se levantou e pulou no lugar, correndo ao redor da mesa uma vez antes de tomar coragem para enfiar um dedo no líquido. Estava mesmo quente! Ela puxou de volta, enfiando o dedo na boca.
— Ai! Quente! Quente!
Clémence estendeu a mão. A menina, acostumada a confiar, ofereceu o dedo que doía. A fada soprou nele.
— Desculpe ter demorado.
Ella ergueu os olhos azuis para a mulher, deitando a cabeça de lado. Não sabia o que queria dizer. Foi quando viu que sua mãe, Eira, tinha chegado ao quintal. Ela se sentou na grama ao lado de Ella, que imediatamente ocupou seu colo. Eira mal lhe deu atenção, olhos focados na fada.
— Fiquei preocupada.
— Eu sei. Sinto muito. Eu recebi sua carta sobre o nascimento e o batismo, mas… algo deve ter dado errado nos meus cálculos de tempo… Bretagne e eu ainda estamos tentando entender como o tempo funciona no mundo das… — A mulher que parecia a mãe de Ella parou, cobrindo a própria boca. — Bretagne. Pelo amor da chuva de verão, ele deve estar maluco atrás de mim…
— Bem, ele veio ao batizado. É o padrinho dela. Ele escreve de vez em quando. Ele também está preocupado, mas o jeito dele demonstrar é… ler mais livros. — Ella não entendia nada, mas riu quando a mãe revirou os olhos. Era verdade. O padrinho estava sempre lendo livros. Suspirando, a menina abraçou a cintura da mãe. Eira olhou para baixo, colocando um fio de cabelo loiro da filha atrás da orelha. — Você gostou da sua tia?
— Tia — ecoou Ella, sorrindo para a fada.
— Ela é irmã da mamãe.
— Irmã? — Ella não tinha irmãos e não queria nenhum. Analisou bem a cara da fada e da mãe dela. Sim, eram bem iguais, como irmãos deviam ser. — Irmã da mamãe?
Eira assentiu. Ella apontou para a tigela de sopa sobre a mesa.
— Magia.
A mãe de Ella riu baixo.
— Sim, ela faz isso muito bem, não faz?
A menina assentiu, acomodando-se. Quando olhou para a fada, a fada estava olhando para ela. Embora conhecesse a frustração como qualquer outra criança da sua idade, Ella não compreendia nada da tristeza daquele olhar.
— Eu não posso batizá-la em uma Igreja — disse Clémence. — Meu tipo não é exatamente bem vindo.
Eira assentiu.
— Não me importa, Clémence. Não é por isso que queria que você fosse a madrinha dela… — A mãe de Ella acariciou os cabelos dela e a criança lentamente fechou os olhos. — Mas pode chegar um dia que aconteça com ela o que aconteceu com você… e preciso saber que alguém vai estar cuidando dela… tanto desse lado da Colina quanto do outro.
Mesmo quase dormindo, Eira pôde sentir flocos de neve caindo sobre sua pele e se aconchegou mais contra a mãe.
— Isso eu prometo, Eira Glynn. — O calor de outro corpo se juntou ao delas. Quando abriu os olhos, a fada Clémence tinha encostado sua testa à da sua mãe. Dois rostos iguais, olhos fechados, um de frente para o outro. Ella se lembraria disso a vida toda e se perguntaria se tinha sido apenas um sonho. — Sempre que sua filha me chamar, eu vou estar ao lado dela para atender seus pedidos.
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